sábado, outubro 21, 2006

A via do cortejo

A Rua de São Vítor, ainda há pouco, como eu e a Nina a vimos, antes de nova chuvada.
Diz-se que a uma cidade essencialmente laboriosa, e que conserva um apertado regimen commercial, convém não perder tempo com os mortos durante o dia. Eis a razão por que no Porto os offícios fúnebres se rezam à noute, quando o giro dos negócios está suspenso e quando, por isso mesmo, os negociantes podem, sem prejuízo dispôr de si. […] Diga-se antes que o costume tem muita força, e que o costume de enterrar os mortos à noute vem de longa data, está arreigado no Porto.”
Pimentel, Alberto (1893) O Porto Há Trinta Annos.

Em tempos que já lá vão, por aqui passavam os tristes cortejos fúnebres, duas horas depois do anoitecer, sob as luzes tenebrosas de tochas incendiadas.
Ainda hoje, debaixo da luz ardente dos candeeiros soturnos da rua, pareço sentir as passadas ritmadas e tensas dos vivos e a presença arfante dos mortos, no seu caminho recto rua abaixo, rumo à porta sul do cemitério do Prado do Repouso.
Lá ao fundo, naquela pose altiva e ameaçadora, a Capela e o Colégio dos Órfãos, reencarnação do velho seminário e destino desejado do Tribunal do Santo Ofício, arremessam-se num arrepio súbito e quente pelas minhas costas, graças à rectidão da minha coluna vertebral e da minha rua visceral.
À medida que fecho a janela e a luz amarelada se esvai, sinto as mãos húmidas do transparente orvalho madrugador que reflecte avermelhado como sangue derramado.
Tempo, memória, herança, passado. Bolo confeccionado nas mãos de um antepassado, na saga contínua do cortejo enlutado.

A habitual revista de blogues:
1 - Tem-se confundido o Teatro Plástico com aqueles que não querem a gestão privatizada do Rivoli. O segundo grupo poderá incluir o primeiro, mas não se resume a ele, ao contrário do que alguns querem fazer crer.
2 - E estou com o POS: "
Não me apetece muito falar do Rivoli, dizer mal do que Rui Rio é e representa, dizer que também chegam as coisas a este ponto por os meios culturais serem tacanhos e amiguistas, dizer que a ocupação não passou de "fait-divers" inconsequente mas não perdeu por isso validade e até legitimidade moral (não legal), assumidas que sejam todas as eventuais consequências (que bem podiam ser nenhumas, saibamos relativizar as coisas). Bom, parece que já falei...". E não me apetecia falar, de facto. Por tudo o que acabei de transcrever (e que concordo em absoluto), acabei por achar interessante ou detestável o que se foi escrevendo dos dois lados da barricada. Por um lado, gostei muito do que o Manuel Jorge Marmelo, o Tiago Barbosa Ribeiro e o Rui Manuel Amaral foram escrevendo, não só por causa da minha completa antipatia pela política municipal de Rui Rio, como pela vontade de apoiar quem tenta lutar contra o poder, sobretudo quando este é praticado de forma sobranceira e arrogante. Por outro lado, apreciei o que Pacheco Pereira comentou neste pequeno texto, exactamente porque as posições do Teatro Plástico não esgotam as ideias de quem contesta a política municipal.
3 - Já agora, no que se refere ao
Abrupto e à tão falada Rivolução, já não mantenho a mesma concordância no que se refere ao texto também publicado no Público. Entre outras coisas maiores, sublinho a contradição entre este trecho: «os governantes mais iluminados perceberam que, investindo na "cultura", essencialmente na "animação cultural", obtêm boa imprensa, legitimidade, figuras de cartaz e "nome". É caro, mas é eficaz, porque tem a enorme vantagem de proteger a propaganda com a intangibilidade da "cultura", que ninguém contesta nem discute, porque a criatividade está acima do debate vulgar da política» e o insucesso generalizado que levou Santana Lopes, Manuel Maria Carrilho e Fernando Gomes a derrotas eleitorais. Primeiro, porque comparar Santana Lopes com um político iluminado (a não ser que seja ironia...) não parece fazer sentido. Segundo, porque a tal política eficaz redundou em derrotas eleitorais em todos os exemplos nacionais citados. Das duas, uma. Ou o marketing político em Portugal anda pelas ruas da amargura (o que sinceramente não me parece), ou o povo português foi bem mais inteligente que o resto do mundo nas suas eleições (o que me deixa também muitas dúvidas).
4 - Sempre gostei dos jogos com as ironias da história. Neste capítulo, adorei 3 posts:
Este do Bruno Martins, contrastando Camões com Maomé; este Quiz em 3 capítulos (1, 2, 3) do JCD no blasfémias; e a continuação do já referido texto do POS, na Fonte das Virtudes.
5 - Duas notas finais. Uma, para lamentar mais uma perda patrimonial no Porto, lembrada pelo Dias com Árvores, o jacarandá do Parque de São Roque. Outra, para apoiar a
sugestão de Vital Moreira, de influência inglesa, no Causa Nossa.

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2 Carruagens:

Blogger PCS said...

Quem disse que o Porto não é a cidade das luzes!!
Bela foto nocturna.

sábado, outubro 21, 2006 7:06:00 da tarde  
Blogger Mariane Monteiro said...

Maravilha de blog!!!!! Estarei sempre aqui. Grande abraço.

segunda-feira, outubro 23, 2006 3:15:00 da tarde  

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